15 de setembro de 2018

Ulisses em Kristineberg



Somos um soluço do acaso. E, todavia, a felicidade é uma erva daninha que cresce nos corações mais frágeis. Um prego cravado a furtar-se à dor. Quando acordo, de manhãzinha cedo, já a rapariga de Blekinge tinha ido para o Hospital. Estava a nevar. Fazia Sol. Talvez chovesse. Levanto-me para ir tomar o pequeno-almoço à cozinha. Os pratos ainda estavam no lava-loiças. Tínhamos comido peixe assado no forno e bebido uma garrafa de vinho branco que tinha trazido de Portugal. Nevava, não era? E eu mordiscava os cantos de uma torrada com queijo e bebia sumo de toranja. Um gato por ali tamborilava as suas patas na madeira. O gato conversava comigo. Eu folheava o Dagens Nyheter sem perceber quase patavina. Não é necessário muito para ser-se feliz, não é, Alexandre? – pergunta-me o gato. Concordo, gato, de dia há diagramas de Penrose e bebe-se café. À noite janto e faço amor. De manhã enfarrusco-me com o matutino e enrosco os meus pés sobre o teu dorso, e tu finges que reclamas só para espaireceres do teu fastio contagiante. E aos fins-de-semana passeamos pelo arquipélago – eu e a rapariga de vestido florescido – e conto as ilhas que salpicam a longa esteira de sal do mar. Não confundes Ítaca com os ilhéus do Báltico? Não, gato, Ítaca é onde os meus dedos palmilham o rosto dela. Ítaca é um apartamento do rés-do-chão em Kristineberg.

De pés descalços a ver a neve tombar e a roer uma torrada.

Nariz tisnado pelo sol dez anos depois da queda de Tróia. Chatearam-se com os deuses. Athena e as suas tempestades. Ulisses e Penélope. Sete anos de tormentas. E a ninfa Calipso.


Um dia, ela previu que eu iria partir, insatisfeito, rumo a uma outra Ítaca, talvez no mar Jónico. Agora que a neve já cessou de cair, quase que me escuto a miar-lhe: “Sou Ulisses no meu passeio de Lévy”. 

Imagem: Snöväder, Kristineberg, © Hasse Persson